15 fevereiro, 2023

Ozório Amaral do Rego

foto acervo familiar

Há tempos venho tentando escrever alguma coisa que possa retratar o personagem Ozório de Zé Batista. Personagem porque não foi uma pessoa normal, foi um personagem para quem a vida sempre foi um teatro. A capacidade de adaptar-se e sair-se bem das inúmeras situações que o cotidiano lhe impunha, qualifica-o para ostentar o termo de personagem, ao invés de pessoa normal pobre vivente. 

Simplório, sempre chegando às raias do hilário, tirava de letra as gozações que lhes eram impostas pelo fato de ter vindo da Cacimba Nova. Totonho era seu maior algoz. 

Sobre o nome, não posso precisar se orientado ou por livre e espontânea criatividade, esclarecia sempre que seu nome carregava o Amaral do Pai e o Rego da Mãe. 

Ozório: Repito, era diferente em tudo. Baixinho, ousado, namorador. Era festeiro e briguento. 

Nas brigas de rua, deixava sempre o adversário com um “relógio” marcado no corpo por uma ou mais mordidas. As dentadas, quando brigando se via em desvantagem, eram cortantes como dentes de piranha. Mordida do Ozório, principalmente dada nas bochechas, o suplicante carregava a marca por longo tempo. 

Teimava em jogar futebol. Era ruim de bola que dava pena. Sempre “jogava” de beque (lateral) direito. Bruto como um cavalo doido. Partia cego pra bola com uma direita devastadora. Normalmente “furava”. Tinha pés pequenos. Calçava 37. Numa bola dividida um simples toque sutil do atacante, (Temir, de João Arconso e Bete Pires, eram mestres em deixar Ozório mais perdido que cachorro caído de caminhão de mudança) nosso beque passava lotado chutando o vento. Quando acertava uma rebatida a coitada da bola ia parar nas copas dos avelozes que cercavam o campo. 

A capacidade de improvisação e reverter situações eram tamanhas que meu querido amigo sempre estava de bem com a vida. Sempre rindo. 

A família Batista era economicamente bem situada, o pai de Ozório, comercializava cereais numa banca da feira, os irmãos Bil e Bidó gostavam de caminhão, tanto que pertenceu ao Sr. Zé Batista o primeiro Chevrolet Brasil 1955 Zero Km. 

O tio, Anizio Batista, também tinha uma banca na feira, porém comercializava miudezas, quinquilharias e perfumes baratos. Anizio Batista vestia-se espalhafatosamente com roupas de cores fortes. 

Naquela segunda feira, dia da feira livre, aconteceu um fato que seria cômico se não tivesse sido trágico. 

Um enxame de temíveis abelhas africanas, sem que fossem vistas, alojou-se na torre da igreja, bem próxima aos sinos. Eram dois sinos pequenos. 

O sacristão, Sebastião “Seu Mama” ao tocar os sinos chamando o povo para a cerimônia de batizados coletivos, enfureceu os insetos. 

As abelhas desalojaram-se da torre, desceram para o quadro da cidade formando uma nuvem negra tal qual um gigantesco rolo de fumo. O alvoroço foi tamanho que a feira naquela segunda funcionou até o ataque das abelhas. Anizio Batista, o tio de Ozório, trajava uma camisa de cor vermelho forte, alvo preferido das africanas. Muito gordo, não pode correr. As abelhas fizeram a festa no corpanzil de Anizio Batista. Levado para a Farmácia Pereira desmaiado e quase morto, salvou-o um remédio milagroso que Dona Corina Pereira aplicava em tudo quanto fosse preciso. O SALIGIRENO era usado em, desde topadas, unheiros e espinhelas caídas, até picadas de abelhas. Seu Anizio Tinha picada dos insetos em todo o corpo. 

Sorte de todos, que as abelhas quando picam injetam o ácido fórmico (motivo da dor) e na saída deixam o ferrão com os intestinos, morrendo logo a seguir. 

Ozório foi o único menino que enfrentou cara a cara o temível delegado Cabo Deodato, quando foi flagrado jogando na roleta de Dedé Blandino no bar de Zuca Pinto. Menor, não podia. Enfrentou o cabo porque não teve outra saída. Não teve tempo de correr. O cabo vendo a cara enfezada do menino, sem dar ares que estivesse com medo, afrouxou a mão, soltou o punho de Ozório que saiu do bar com ar de desdém vitorioso. 

Daquele momento em diante a autoridade do Cabo Deodato ficou arranhada, tanto que não demorou muito chegou a Custódia, procedente de Floresta o Sargento Mendonça com a finalidade de substituí-lo. 

Dentre todos nós, contemporâneos do Ozório, ele destacava-se pela precocidade no comportamento. 

Que eu saiba, Ozório foi o primeiro de nós, antes dos quinze anos, a aventurar-se pras bandas da Rua da Remela. O baixo meretrício deixava assim, de ser um tabu para Ozório. Iniciara-se sexualmente cedo, para os padrões da época, deixando-nos todos com inveja e admirando a coragem do nosso herói. Como foi, como teria sido, Ozório não contava. Tão pouco dava o nome daquela que o desvirginou.

Assim, Ozório foi da nossa turma, o precursor das investidas na Rua da Remela, bem como das suas consequências. 

Foi precoce até para nos deixar. O diabetes o levou para o andar de cima ainda com muita vida para viver. 

No concurso para Aprendiz de Marinheiro, não passou nos testes para Escola de Pernambuco. Convincente, conseguiu uma nova oportunidade na Escola de Vitória no Espírito Santo, onde jurou bandeira e se fez marinheiro. 

Encontramo-nos no Rio de Janeiro, moramos juntos, dividimos o mesmo quarto numa pensão imunda no bairro de Marechal Hermes. O dono da pensão era tão sacana que aos domingos, no retorno da praia, o miserável fechava a água, nos deixando sem tomar banho e com o corpo salgado. 

Foi um companheiro e tanto. Companheiraço como diria. Falar de como foi meu amigo, seria longo, vou restringir-me a um fato deveras “bem Ozório”. 

Servindo no Cruzador Barroso, ele era marinheiro do Serviço Geral de Convés. 

O Cruzador Barroso receberia naqueles dias a visita em inspeção do Ministro da Marinha. O navio precisava estar apresentável, por isso uma demorada faxina geral estava em execução. Já durava mais de uma semana. 

O mastro do Barroso precisava ser repintado, mastro longo, com mais de quatro metros de altura, encarapitado no topo estava o Cabo Orleans executando pintura. Distraído e sem o cinto de segurança, o Cabo despencou estatelando-se na chapa de ferro do convés. Na queda bateu a cabeça na superestrutura, morrendo em decorrência de lesão craniana. 

O Cabo Orleans, cearense, morava numa rua abaixo da nossa também em Marechal Hermes. Era nosso companheiro do trem das cinco da manhã em direção à Central do Brasil. 

Recentemente casado, a esposa do Cabo estava grávida. A notícia teria que ser dada com muito jeito, tato e cuidado. 

Como sabíamos onde o Cabo morava, Ozório se prontificou em dar a notícia à viúva. 

Devidamente autorizado, Ozório levou consigo a gôndola (espécie de macacão) que o cabo vestia por ocasião do acidente. 

A casa, uma meia-água, ficava nos fundos de um terreno grande onde futuramente o Cabo Orleans ampliaria a residência. 

Ozório tocou a campainha. Uma senhora aparentando vinte e poucos anos, com uma barriga proeminente indicando gravidez recente, atendeu vindo até o portão. 

Ozório não encontrando palavras, mostrou à mulher a gôndola do Cabo, imediatamente reconhecida, e foi dizendo: 

--A senhora conhece esta roupa, com esta divisa ? Sim, respondeu a mulher. É do meu marido. 

--Pois é minha senhora, esta gôndola despencou do mastro do Cruzador Barroso de uma altura de mais de quatro metros. 

Intrigada, a mulher perguntou: 

--E o Orleans, meu marido, sabe disso? 

Resposta do Ozório: 

-- Sabe não, minha senhora. Ele estava dentro!!! 

Fernando Florêncio 
Ilhéus-BA
Novembro/2012. 

Um comentário:

  1. Fernando, se vc. fosse um pintor não conseguiria retratar o saudoso Ozório com mais fidelidade do que esse seu texto. Ele retrata o Ozório exatamente como ele era. Tive a felicidade de privar da amizade do Ozório, que além de primo distante era um verdadeiro amigo, sendo inclusive o responsável pelo meu ingresso no serviço público, Aliás, a única omissão no seu texto foi exatamente esse de não citar o profundo apego que ele tinha a sua família. Não importava quem fosse o parente: os doidos da Cacimba Nova, os esquecidos, os analfabetos ( a grande mairoia), todos eram profundamente repeitados e apoiados por Ozório que sempre procurava defendê=los. Saudades do sempre lembrado Ozório.

    José Melo

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