14 julho, 2022

Retalhos de Lembranças por Zé Melo - VI PARTE

por Zé Melo


TEMPOS DIFICIEIS – Capítulo VI (novo)

Seguiu-se então um período de muitas dificuldades. Zeca passou também para o ramo dos transportes. Claro, com apenas seus quatorze ou quinze anos, só poderia transportar em carro de mão. Amealhou uns trocados e comprou um carro de mão, que lhe garantia o dinheirinho para comprar o material escolar de que tanto necessitava, transportando malas e fardos de mercadorias dos ambulantes na feira livre de Alvorada.

Aplicado nos estudos, no ano em que ingressou no Grupo Escolar, fez as duas primeiras séries, a primeira em primeiro lugar e a segunda classificado no último lugar. Terminou o então curso primário e ficou nisso. Alvorada não dispunha ainda de colégio.

         No entanto foi criado o Ginásio Padre Luiz, onde para ingressar o aluno teria que se submeter a um verdadeiro vestibular, que era o Exame de Admissão. Apesar de instituído pelo Poder Público, no início o curso do Padre Luiz era pago, e Zeca perdeu o primeiro ano do curso, porque não podia pagar as mensalidades.

         No ano seguinte submeteu-se ao Exame, sendo aprovado. Com muitas dificuldades fez o primeiro ano ginasial.

         Desse tempo, Zeca lembra com detalhes, de uma “mãozinha” que deu a um colega. Aílson, estudante dedicado e verdadeiro “cobra” em matemática e outras matérias, fora reprovado várias vezes no exame de admissão, por ter dificuldades com redação, teste eliminatório no exame. Constava de uma descrição a ser feita a partir da interpretação de uma das gravuras que faziam parte do livro didático “Admissão Ao Ginásio”. Ailson pediu a Zeca – que tinha facilidade para redigir, que fizesse uma redação para cada uma das gravuras existentes no livro, para que ele tentasse decorar. Assim feito, no dia da prova foi sorteada a Gravura intitulada “O Campo”, que retratava a paisagem de verdes campos, uma casinha, sol, enfim, uma paisagem tipicamente rural. Ainda hoje Ailson relembra o início da Redação: “Se há um lugar onde podemos sentir a natureza, esse lugar é o campo”. Não deu outra: Ailson passou no exame, e hoje é competente advogado em Alvorada. 
 
         Aí veio a primeira atividade política de Zeca. Era ano eleitoral e as eleições eram por demais disputadas. Disputadas a ferro e fogo, com mortes, tiroteios envolvendo os políticos, enfim, uma verdadeira guerra em busca do Poder. Naquele ano concorria Zeferino Souza, apoiado pela situação, e Josa Florentino, pela Oposição. Comícios na cidade e nos distritos, propaganda violenta nas difusoras, muita confusão e perigo de lutas armadas, que mancharam a história da cidade com o sangue de seus filhos.

         A oposição estava em campanha desde muito tempo, com vistas a construir um Hospital. Tema de defesa de um lado e crítica de outro, Zeca foi contagiado pelo clima da política e fez vários versos satirizando a campanha do Hospital, e enaltecendo o candidato da situação.

         O resultado foi dúbio para ele: o candidato da oposição ganhou a eleição, o que representou a primeira derrota eleitoral, mas por outro lado Alvorada ganhou o seu Hospital, ainda hoje funcionando.

         No Ginásio Padre Luiz, Zeca participava ativamente dos movimentos estudantis, das atividades de classe e extraclasse. Redigia e publicava o mural “O Combate. Aliás, devido ao jornaleco “O Combate”, Zeca entrou numa tremenda fria: logo após determinado Carnaval, surgiu uma lista apócrifa, sob o título de “jornal das moças perdidas no carnaval”. Pelo fato de mencionar a palavra Jornal, atribuíram a autoria ao Zeca. Isso o magoou profundamente, sendo hostilizado pelas pessoas da sociedade conservadora, e até mesmo já depois de muitos anos ainda rendeu uma agressão verbal em pleno ambiente de trabalho, originando-se uma demanda judicial onde a agressora foi condenada. Na ociosidade que reinava em Alvorada, um dos passatempos preferidos de Zeca era fazer versos. Versos satirizando colegas, elogiando personalidades, comentando fatos, enfim, um verdadeiro cordelista. Também fazia paródias, que eram cantadas para gozar de colegas. Certa feita Zeca fez uma paródia onde eram narradas as mancadas de Roberto, em relação ao vício que o mesmo tinha jogar. Na letra de “Paraíba Mulher Macho”, de Luiz Gonzaga, a paródia contava todas as mancadas de Roberto que tentou fazer uma paródia gozando com Zeca e resultado foi desastroso. Depois de tremenda vaia da turma, Roberto foi denunciar Zeca ao dublê de Diretor e Juiz de Direito da cidade, Dr. Francelino. O Castigo (ainda havia) era ficar na Diretoria, no intervalo entre as aulas (recreio). Zeca foi prá lá, e quando estava só ele, o Diretor e a Secretária, o Dr. Francelino pediu a Zeca que cantasse a paródia, baixinho, para turma não ouvir. Zeca cantou, e quando olhou para o Diretor, viu que ele estava vermelho de tanto rir. Foi premiado com a absolvição da pena e voltou para o recreio.

 Nas ruas, Zeca fazia o que toda aquela turma fazia: jogava bola, brincava de render (do Mocinho), carregava água do chafariz para casa, brigava nas Cacimbas que forneciam a água de beber. Tudo isso nos seus quinze anos! Imagine-se hoje, um rapagão de seus dezesseis ou dezessete anos brincando de carrinho pelas ruas da cidade! Pois, naquele tempo era normal.  Pode parecer estranho para hoje, quando adolescentes de doze ou treze anos só pensam em “ficar”, namorar e transar. Naquele tempo, namoro só depois dos dezoito e para homens, porque para as mulheres ainda era mais rigoroso o sistema familiar.

         As dificuldades financeiras obrigaram Zeca a largar os estudos. Ficou sem nada para fazer. Foi quando passou a comprar latas de doces vazias (naqueles tempos as latas de doces eram reutilizadas) para vender na fabriqueta local. Comprava também garrafas vazias para revender aos bodegueiros. Também passou a vender jornais (Última Hora), por intermédio do dono da fabrica de doces, que como tinha ideais esquerdistas, queria disseminar aquele matutino na cidade. A revolução de março de 1964 acabou com aquela atividade, tendo impedido o jornal de circular. Foi então que o dono da fábrica convidou Zeca para trabalhar lá. A “fábrica” tinha apenas dois empregados, o dono era o mestre doceiro, e Zeca ficou encarregado de fazer a escrituração fiscal do negócio, e também ajudava na embalagem dos produtos.

         Foi por esse tempo que Tonho adquiriu uma propriedade Rural, no Sítio Santa Marta, um pé de serra tão esquisito quanto frio. Sem ter o que fazer na cidade, Zeca resolveu morar lá. Ele e os irmãos foram para o Sítio, e semanalmente Tonho vinha sempre aos domingos, para na segunda-feira transportar passageiros para a feira de Alvorada. Vez por outra Nina também vinha. Zeca bem que tentou se adaptar as atividades rurais. Tentou “botar um roçado”, como se diz por lá, porém depois de poucas horas desistiu: seu organismo não aguentava o esforço de derrubar a vegetação a foiçadas. Resolveu fazer carvão: aí já era mais fácil, pois havia um grande estoque de lenha aproveitada da derrubada de caatinga para as roças. Enquanto durou a matéria prima, fabricou carvão que era transportado para Alvorada e vendia lá, o que ajudava nas suas despesas.

A TENTATIVA QUE NÃO DEU CERTO - Capítulo V

Por essa época, começava o fenômeno que revolucionou a cidade de Santa Cruz do Capibaribe, a sulanca. Com sua visão de empreendedor, Tonho introduziu no mercado local a popular sulanca. Foi a Santa Cruz do Capibaribe, que naquele tempo tinha uma produção artesanal de roupas, fez compras e botou Zeca prá vender, aos dez anos, na calçada do estabelecimento. Às segundas feiras, Zeca amanhecia já arrumando suas mercadorias na calçada. Com o tempo, Zeca ia crescendo e também suas responsabilidades nos negócios da família. Com cerca de doze anos já era um ambulante de sulancas, vendendo seus produtos nas feiras de Sítio dos Novos aos sábados e São Carlos ou Cacimba Velha aos domingos. Quando no domingo ia a São Carlos, lá pernoitava e na segunda feira ia vender seus produtos na Feira de Santo Antônio. 

Depois Tonho, sempre inovando, fez uma compra considerada loucura pelos seus colegas de então. Em uma cerâmica, viu pilhas e pilhas de xícaras e pires deformadas, defeituosas e sem valor comercial. Consegui um precinho baixo, fretou um caminhão e levou aqueles refugos para Alvorada. Em seguida se dedicou a separar as peças defeituosas, formando pares de pires e xícaras e pratos rasos e fundos. Haviam xícaras com o fundo aberto pelo excesso de calor do forno, pires que se deformava de tal maneira que não se sabia quando ele estava emborcado ou de forma correta, pratos que mais pareciam rodas de cerâmica, enfim, tudo deformado, defeituoso e aparentemente sem utilidade. Lêdo engano. Quando Tonho mandou anunciar na Duas Marias, a rádio da época na cidade, com os preços tão baixos, foi uma verdadeira revoada dos clientes à Casa Santo Antônio. Resultado: não deu prá quem quis. Tonho ainda trouxe outras vezes, até acabar o estoque de refugos da cerâmica, sempre vendendo. Espalhou-se tanto aquele tipo de louça, que Zeca, já homem feito, indo fazer um trabalho de escriturário em São Francisco, cerca de vinte anos depois, ao tomar café no restaurante improvisado naquela cidadezinha, encontrou uma xícara torta, tendo perguntado a dona do restaurante onde ela havia adquirido aquele louça. Ela respondeu que comprou grande quantidade de pires e xícaras, a preço de banana, há vários anos, em Alvorada. 

Outra engenhosidade de Tonho aconteceu com um concorrente. A Casa Grande era a maior de todo o sertão. Para se ter uma ideia, naqueles tempos de pouco movimento comercial, seus proprietários compravam ferragens por caminhões. Uma vez era um caminhão de enxadas, outra de picaretas, e assim por diante. Tonho vendo seu estoque de louças diminuir, e vendo que não compensava ir a Recife comprar apenas aquela mercadoria, se dirigiu a um dos proprietários e perguntou se por acaso ele não estava interessado em comprar algumas dúzias de pratos de louças, a um preço baixo, tendo o mesmo perguntado o preço. Tonho, matreiramente, ofereceu um preço abaixo do mercado, tendo o seu concorrente, como todo comerciante decretado: 

- “ Mais barato eu tenho aqui, a quantidade que você quiser!” 

Foi a deixa para Tonho comprar algumas dúzias de pratos a preços mais baixos que na Capital. 

Com o passar do tempo, Tonho decidiu investir também em imóveis. Comprou uma área no alto de Carí, onde ficava o antigo Cabaré, também conhecido por “Sipitinga” . Construiu onze quartos e quatro casas, para alugar. Depois comprou um vasto terreno na Rua Fraga Rocha, esquina com a Travessa Maria Helena, onde construiu uma casa com nove cômodos, rodeada de uma vasta murada. 

Mas o espírito aventureiro de Tonho o levou a uma derrocada no seu comércio. Naqueles tempos em Alvorada, veículos motorizados eram raros. Apenas a fubica de João Candeia, um Ford Bigode de 1929, a barata de Zé Gordinho, eram os únicos automóveis de aluguel da cidade. Particular, apenas João Ciro e Elídio da Farmácia tinham o privilégio de possuir carro. Caminhões, só o de Tenente Leco e o de Silvino. Fora isso, apenas a fubica do padrinho do Zeca, Zé Mariano, um meio-caminhão Chevrolet, do ano de 1940, conhecido como “Pombo Azul” , e um carro cuja marca era um mistério, pertencente ao padrinho de todos os motoristas de Custódia, João Padrinho. Era uma pequena camionete, apelidada de “Carochinha”, e que servia para “Padrinho”, como era chamado carinhosamente, ensinar profissão de motorista a dezenas de candidatos. 

Tonho resolveu partir para o ramo de transporte. Adquiriu o velho “Pombo Azul”, e o feitiço da gasolina fêz com que ele abandonasse praticamente o comércio. Foi trocando de caminhões, sempre em detrimento do comércio, e tendo que vender algumas das casas. Terminou ficando apenas com um velho caminhão Ford e a casinha construída a duras penas. 

A VOLTA - Capítulo IV

Mas, tudo tem seu dia. Não mais que de repente, Zeca está novamente sentado no banco de um vagão do trem que traria aquela família de volta a suas origens. Sua cabeça não entendia direito porque Tonho havia vendido boa parte dos “troços”, deixado o resto lá na casa – inclusive o já desgastado velocípede, e embarcaram naquela viagem que ele propriamente não sabia de que se tratava. Alguns dias depois estão novamente em Alvorada. De início, na casa de uma Comadre da mãe de Zeca, onde tomam o café da manhã. Em seguida, estão nas imediações daquela que fora a casa da família, na tradicional Avenida Central. 

A velha Marinete, uma versão arcaica de micro-ônibus, foi devidamente fretada por Tonho, para levar a Família até a Serra da Chícara. O motorista era Zezito, com quem Zeca, anos depois, trabalhou com ele na repartição.Seguiram a viagem, sem problemas exceto o fato da velha Marinete ter “atolado” na areia do Rio da Imbaúba, no corredor de Sêo Zélio. Uma junta de bois providenciou a passagem e finalmente a família chega ao seu destino. 

Não dá prá descrever a alegria de Nina, de sua mãe, seu pai, suas irmãs, enfim de toda a família reunida para ouvir relatos da aventura de dois anos vivendo distante, no sul maravilha, despejados que foram de sua terra. 

Aos poucos a vida vai se arrumando. Naquela mesma semana, Tonho vai a casa de seus pais, no Poço Novo, um Sítio que deixou de existir, inundado que foi na década de sessenta pelas águas do Açude Paturi. De volta, avisa a família que irão morar lá. 

Zeca lembra do impasse que ocorreu quando Nina foi conhecer a nova moradia: a velha Casa de Pedra, secular construção, dos antepassados de Tonho, abandonada, semi-destruida e habitada por cobras e morcegos. Fez finca pé, brigou, mas não teve jeito: Tonho chamou os irmãos, fez uma verdadeira faxina na casa, capinou o mato em volta, recuperou paredes, cobertura, enfim, deixou a casa em condições de moradia mais ou menos perfeitas. Ali Zeca viveu intensamente a vida sertaneja de um menino livre, solto pelas capoeiras, com seus oito anos. 

Pertinho dali, tinha a casa de Pianim, um sertanejo com características de fidalgo, com numerosa família sob o chalé longo, á beira da estrada, distando não mais que cinquenta metros da casa de pedra. Zeca fez logo amizade com a criançada, e os dias eram curtos para tanta brincadeira e artes que pregavam. 

À frente da casa de pedra havia uma capoeira, cuja vegetação era baixa, composta basicamente por jurema preta e catingueira. No inverno, o cheiro da jurema preta invadia a casa. E o melhor daquela capoeira é que sob a vegetação baixa, não havia ervas, era tudo limpo, o que permitia se brincar a vontade, na sombra, sem o susto de cobras e outros animais silvestres, numerosos naqueles tempos. 

Zeca lembra, saudoso, o dia em que seus vizinhos também tiveram que tomar o destino do Sul, viajando para o Paraná. Foi um baque para Zeca e seus irmãos que agora já não dispunha mais de amigos prá brincar, pelo menos tão próximos. 

Tonho trouxe de São Paulo a ideia de reiniciar as atividades comerciais. Talvez tenha sido o primeiro na região a utilizar um meio de transporte praticamente inexistente naqueles tempos. Foi à caatinga, cortou madeiras, serrou e fabricou uma espécie de charrete e carroça ao mesmo tempo, para ser puxado por um burro. A partir daí, iniciou o seu comércio ambulante, pelas povoações mais próximas. Vendia miudezas nas feiras de Alvorada, de Rio da Aurora e de Carolina. No sábado de madrugada partia para Rio da Aurora, onde após a feira pernoitava e no domingo de madrugada partia para Carolina, na época Cachoeira. Ao final da feira, retornava a Alvorada, chegando altas horas da noite. Na segunda feira, dia da maior feira livre da região, no final da tarde retornava para a Casa de Pedra, em Poço Novo. Algumas vezes levava Zeca com ele. A carroça tinha na frente um tosco banco que servia de assento, e logo atrás uma pequena carroceria que abrigava as mercadorias, sob o lastro da carroceria estava a armação da barraca que protegia do sol forte das feiras do sertão. Fez muitas viagens, semanas a fio, meses seguidos. Isso durante alguns anos, tempo suficiente para Tonho amealhar algum dinheirinho que lhe permitiu adquirir a bodega de Zé Blandino, ponto comercial existente até hoje, na Esquina da Avenida Central com a Avenida Sete de Setembro,. A bodega – se é que pode-se chamar aquilo de bodega, se resumia a um longo balcão, prateleiras vazias, algumas garrafas também vazias, um tambor que servira outrora para a venda de querosene, a velha balança de dois pratos, pesos enferrujados e o pau de cortar papel para embrulho das mercadorias que eram servidas diretamente das prateleiras para o balcão. Isso quando voltasse a ter o que vender. Mas Tonho era engenhoso. Começou devagarinho, vendendo o pão da manhã, vassouras feitas de palha de coqueiro, algumas bebidas, enfim, essas coisas que é fácil de conseguir com pouco dinheiro e vender rápido. Aos poucos o estabelecimento foi se enchendo, e cerca de dois anos depois estava superlotado de estivas, cereais, miudezas, enfim, de um tudo. Mas Tonho queria mais. Havia um ponto comercial no Centro, na Praça Padre Luiz, fechado. Tonho alugou e ali se estabeleceu com a Casa Santo Antônio, repleta de miudezas, ferragens, materiais de construção, louças etc. Bastante movimentada, com vasta clientela, a Casa Santo Antônio crescia a cada dia. Tonho era auxiliado pelo pequeno Zeca, enquanto a Bodega do Alto ficara sob os cuidados de Nina, durante algum tempo. Depois, Tonho resolveu morar próximo à sua Casa Santo Antônio, vendendo a Bodega e aplicando o dinheiro em mercadorias para o seu novo negócio. Agora já era o fornecedor em grosso para muitos ambulantes, a grande maioria seus parentes, que vendo o seu sucesso enveredaram também pelo mundo dos negócios. Aparício Camelo, Seba Camelo, Lourinho, Dudé, Joãozinho, Genário e muitos e muitos outros iniciaram sua vida adquirindo as suas mercadorias na Casa Santo Antônio.

IMAGEM NÍTIDA - Capítulo III
  
Agora sim, sua memória recorda com nítida perfeição, a sua nova moradia, a cidade, Capivari, o Rio Lavapés, que cortava a cidade. A estação do trem, o enorme canavial de Seu Santino, que ficava por traz de casa. Casa que Zeca tem fotografada na memória: de frente para o poente, recuada, com um janelão na parte da frente, onde ficava um quarto, a porta lateral que dava acesso à sala de visitas e à casa como um todo. Em seguida outro quarto, a cozinha, e lá por trás da casa, o imenso canavial separado apenas pelo terreiro de terra vermelha. Ao lado, a “casinha”, que servia coletivamente a cerca de 05 casas vizinhas. No lado esquerdo da casa, vizinhos que eram do Norte também, como chamavam a todos nós nordestinos. Á esquerda, uma casa bem maior, que abrigava um família numerosa. Recorda que o chefe daquela família era um “artista”: tocava viola e cantava modinhas caipiras. Formavam a dupla Severo e Severiano. Quem era mesmo o dono da casa? Severo, ou Severiano? Não consegue lembrar. Apenas que se quedava extasiado com os acordes da viola caipira, nas noites em que a dupla fazia seus ensaios. 

A vida era de uma rotina que só as crianças podem suportar. Acordar cedinho, aguardando a passagem do entregador de pães e de leite. Brincar até abusar, no terreiro de tráz ou no oitão da casa, e o pior, tomar aquele banho gelado que era um verdadeiro martírio para quem era acostumado ao calor do sertão nordestino. Por mais que a água estivesse morna, ao final batia-se o queixo por um longo tempo. E aguardar o fim de semana, quando o seu pai vinha do trabalho distante, como vigia de uma obra na zona rural. 

O Rio Lavapés, que passava por trás da casinha onde morávamos, era preocupação constante de Nina, a mãe de Zeca, temerosa de que algum acidente acontecesse. Zeca certa vez empreendeu uma verdadeira aventura, saindo escondido e pegando carona em uma canoa percorreu bom pedaço do rio, tomando a inevitável surra na volta, horas depois. Outra estripolia que Zeca vez por outra lembra, e ainda se choca com as consequências que poderiam ter ocorrido, foi na “ casinha” . Não havia bacia sanitária, e a construção era bastante rústica. O piso de madeira continha um buraco quadrado, onde eram feitas as necessidades. Pois o Zeca certa feita olhou aquela escuridão lá dentro, botou as pernas e desceu até a cintura prá ver se seus pés atingiriam o chao. Ainda bem que desistiu logo e saiu ileso. 

Certa vez Tonho, o pai, levou Zeca com ele, pois iria trabalhar apenas um dia e retornaria no dia seguinte. Animado com a novidade, Zeca se preparou como pode. Mas a experiência não foi nada agradável. No meio do mato, o abrigo era um barracão de madeira, coberta de zinco, e o frio que sentiu naquela noite o desencorajou a voltar aquele local. 

De qualquer forma as coisas estavam bem melhores para Zeca e sua família. Com os irmãos tiveram até o luxo de ganhar um presente – inimaginável nas condições de sua terra. Um velocípede, orgulho dos três peraltas que a partir de então não viam as horas passar, sempre brincando e brigando pelo brinquedo. Interessante é que ele e seus irmãos na sua inocência de criancinhas pequenas – seis, quatro e três anos respectivamente, arrumaram uma forma prática de se comunicar. Não se sabe porque cada um era um número. Assim, Zeca, o mais Velho, era “Um” , Giba, o segundo, era “Dois”, enquanto que o mais novo, Nonô era “Três”. E só se tratavam por esses números. 

- Mamãe, “Dois” tá dando em mim! 
- É mentira, mamãe, foi “Um”! 

E assim a vida ia passando, calmamente, com o Tonho sempre trabalhando, Nina, sua mulher cuidando das crianças e da casa, e as crianças apenas brincando. De novidade, apenas a chegada de mais uma criança, Maria, apelidada Nenê, branquinha, de olhos azuis como a sua avó materna. 

Algum tempo depois, chega do longínquo sertão nordestino, um tio de Zeca, Mário, irmão de sua mãe. É uma verdadeira festa. 

Trabalhador braçal disposto, diferente de Tonho, que era mais afeito ao comércio e outras atividades mais “ maneiras”, Mário logo se adaptou ao trabalho e com algum tempo também veio buscar a família no norte, como se dizia lá por São Paulo. E a vida prosseguia, apenas marcada pelas diversas vezes em que Zeca, um pouquinho maior que seus irmãos surpreendia sua mãe, Nina chorando. Perguntava sempre o que havia e a resposta era uma só: saudade dos pais, da terra, da casa, enfim, de suas raízes.

A TRISTE PARTIDA - Capítulo II

Novo retorno no tempo e Zeca agora se vê montado em um burro, cheio de tralhas, malas e trouxas de roupas, junto a outros animais guiados pelo tropeiro conhecido por Servo, saindo da Serra da Chícara com destino a Alvorada. Lá, junto aos irmãos, Giba e Nonô, ajudando a mãe e o pai, carregando malas e trouxas, para um veículo fascinante, jamais visto por eles naquelas bandas. Era um ônibus de cor marrom, com a parte de trás totalmente coberta de poeira vermelha das estradas sertanejas. Estão na cidade e se preparam para embarcar com destino ao Sul. Precisamente para a cidade de Capivari, no interior de São Paulo. A bagagem maior é colocada no bagageiro do veículo, sobre o teto do mesmo. Apenas algumas peças de roupa, algumas cobertas, a quartinha com água e a lata que contém parte da alimentação que será usada na longa jornada: galinha assada, farofa e arroz. E tem início a verdadeira aventura que era uma viagem do Sertão nordestino ao Estado de São Paulo, naqueles tempos. Sol de rachar, a poeira avermelhada da estrada encobrindo as roupas simples dos passageiros. Muito calor, cansaço, noites mal dormidas sob o Ônibus. Sequer lembra a quantidade de dias – sim, dias mesmo, que passaram na estrada cheia de poeira, até finalmente chegarem a uma cidade mineira, onde a partir de então a viagem prosseguiria de trem, meio de transporte jamais visto por ele e seus irmãos. Já não havia a poeira a incomodar, e ao invés do calor um frio irritante além do barulho da velha maria fumaça. 

Desembarcam na cidade de Capivarí, interior de São Paulo. E nova vida se vislumbra para Zeca, seus irmãos, sua mãe, enfim, para aquela família sertaneja expulsa de sua terra pela seca malvada. 

Agora sim, sua memória recorda com nítida perfeição, a sua nova moradia, a cidade, Capivari, o Rio Lavapés, que cortava a cidade. A estação do trem, o enorme canavial de Seu Santino, que ficava por traz de casa. Casa que Zeca tem fotografada na memória: de frente para o poente, recuada, com um janelão na parte da frente, onde ficava um quarto, a porta lateral que dava acesso à sala de visitas e à casa como um todo. Em seguida outro quarto, a cozinha, e lá por trás da casa, o imenso canavial separado apenas pelo terreiro de terra vermelha. Ao lado, a “casinha”, que servia coletivamente a cerca de 05 casas vizinhas. No lado esquerdo da casa, vizinhos que eram do Norte também, como chamavam a todos os nordestinos. Á esquerda, uma casa bem maior, que abrigava um família numerosa. Recorda que o chefe daquela família era um “artista”: tocava viola e cantava modinhas caipiras. Formavam a dupla Severo e Severiano. Quem era mesmo o dono da casa? Severo, ou Severiano? Não consegue lembrar. Apenas que se quedava extasiado com os acordes da viola caipira, nas noites em que a dupla fazia seus ensaios. 

A vida era de uma rotina que só as crianças podem suportar. Acordar cedinho, com o cortante frio paulista, aguardando a passagem do entregador de pães e de leite. Brincar até abusar, no terreiro de trás ou no oitão da casa, e o pior, tomar aquele banho gelado que era um verdadeiro martírio para quem era acostumado ao calor do sertão nordestino. Por mais que a água estivesse morna, ao final batia-se o queixo por um longo tempo. E aguardar o fim de semana, quando o seu pai vinha do trabalho distante, como vigia de uma obra na zona rural. 

O Rio Lavapés, que passava por trás da casinha onde moravam, era preocupação constante de Nina, a mãe de Zeca, temerosa de que algum acidente acontecesse. Zeca certa vez empreendeu uma verdadeira aventura, saindo escondido e pegando carona em uma canoa percorreu bom pedaço do rio, tomando a inevitável surra na volta, horas depois. Outra estripolia que Zeca vez por outra lembra, e ainda se choca com as consequências que poderiam ter ocorrido, foi na “ casinha” . Não havia bacia sanitária, e a construção era bastante rústica. O piso de madeira continha um buraco quadrado, onde eram feitas as necessidades. Pois o Zeca certa feita olhou aquela escuridão lá dentro, botou as pernas e desceu até a cintura prá ver se seus pés atingiriam o chão. Ainda bem que desistiu logo e saiu ileso. 

Certa vez Tonho, o pai, levou Zeca com ele, pois iria trabalhar apenas um dia e retornaria no dia seguinte. Animado com a novidade, Zeca se preparou como pode. Mas a experiência não foi nada agradável. No meio do mato, o abrigo era um barracão de madeira, coberta de zinco, e o frio que sentiu naquela noite o desencorajou a voltar aquele local.

ARRIBANDO - Capítulo I

 Mais ou menos uma hora da madrugada. Zeca é acordado pela mãe, e levado até a pequena sala de visitas, sob a luz amarelada de um candeeiro. Ela explica que seu pai estará viajando para longe, e é preciso se despedir. 

Sem compreender a razão daquela viagem, Zeca nos seus inocentes cinco anos tem mais vontade é de voltar a dormir. Sua cabeça ainda não poderia compreender que aquela viagem, antes de viagem era mais uma fuga. Uma fuga da crise que permanentemente assolava aquele seu pequenino mundo, que se resumia a sua pequena casa, na rua de acesso ao centro da cidadezinha acanhada que era Alvorada da década de cinquenta. 

Só dias depois é que Zeca entendia aquilo. A bodega se resumia a quatro garrafas empoeiradas sobre a prateleira quase vazia, a balança enferrujada, enfim, um cenário de penúria que se abatia naquele pequeno estabelecimento comercial tão típico das pequenas cidades sertanejas.

Em casa, praticamente nada. A velha petisqueira, com espelhos desgastados pelo tempo abrigavam alguns copos, poucas xícaras e pratos. A mesa descoberta. Cadeiras que já pediam aposentadoria há muito tempo. Na sala de visitas, apenas algumas fotografias ampliadas, com retoques feitos grosseiramente, um pequeno rádio elétrico encimando uma pequena prateleira a que chamavam de Atajé, algumas cadeiras envernizadas circundando uma pequena mesa de centro cuidadosamente forrada por minúscula toalha feita de renda branca.

Praticamente mais nada restou de lembranças daquela fase. Apenas o dia em que o empregado da loja de eletrodomésticos ao cobrar e não receber as prestações do pequeno rádio, o levou para sempre. 

E como se acordasse de um sonho esquecido, Zeca se vê agora na casa do Avô materno, no sítio Estrada Nova, na Serra da Xícara, pés descalços, calça segurada por suspensórios feitos do mesmo tecido da calça, sem camisa, correndo pelo terreiro do velho casarão. Sempre as manhãs, acompanhava o avô ao curral, para observar a ordenha, ou como o velho Juvêncio dizia, olhar ele “ tirar” o leite das poucas vacas, mansas, que pacientemente aguardavam o final da ordenha, quando o bezerro que se mantivera preso à sua pata dianteira esquerda, era solto e, faminto, dava verdadeiros socos com a cabeça no úbere da vaca, em busca do pouco leite que sobrara.


6 comentários:

  1. Zé.
    Este relato envolve alguma família de Custódia.?
    Não estou conseguindo identificar as pessoas.
    Estás usando pseudônimos?
    Fernando Florêncio
    Ilhéus/Ba

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  2. Fernando, essa é a história de minha vida. Uso pseudônimos para não melindrar pessoas que eventualmnente figurem no texto.

    Um abraço,

    J. Melo

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  3. Zé Melo.
    Diante de uma saga como esta, vç não deve ter receio de melindrar quem quer que seja.Esta é sua história. Esta é sua vida que precisa ser reunida num livro. Se não o fizer, um dia seus filhos e netos serão seus cobradores.
    Parabens amigo, por tão belo exemplo de vida.
    Ferfnando Florencio
    Ilheus\Ba

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  4. Zé.
    Volto a insistir.
    Este seu relato precisa ser colocado num livro, porém sem os pseudônimos de pessoas e locais.Perdoe-me a sinceridade, mas da forma como está relatado a leitura se torna maçante, cansativa e desinteressante.Para mim, que o conheço, não consegui fazer uma analogia entre o Zeca (virtual) e o Zé Melo real,imagine então para aqueles que não te conhecem.Se esta é tua história real, porque torna-la ficcional?
    Desculpa Zé, mas como está, é um desperdício.Não consigo entender este teu anonimato.
    Fernando Florêncio.
    Ilhéus/Ba

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  5. Fernando:

    A bem da verdade eu já havia pensado em "dar nome" aos bois. No entanto, por se tratar de uma exposição muito grande, na internet necessitamos ter a auto-censura.
    Mas você me instigou a escrever um livro com base nesses textos, e caso isso venha a ocorrer, aí sim, será uma narrativa bem realista, com personagens e lugares reais. Obrigado pela preocupação pelo incentivo.
    Um Abraço,

    José Melo

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  6. Zé Melo.
    Muito prazeroso voltar a este assunto. Seja breve na editoração da história da sua vida enquanto ainda existe pessoas da nossa geração para nos ler. Sobre o tópico que envolve a fábrica de doces, não esqueça de citar o Cipriano (ou Supriano), verdadeiro braço direito operacional do proprietário. Cipriano era o "faz tudo" daquela incipiente fabriqueta. Tanto descarregava caminhões com caixotes de goiabas quanto mexia com uma longa pá de madeira, os tachos com o doce fumegante. Certa feita o doce fervente "pulou" do tacho e foi se encaixar no peito nú de Cipriano. Queimadura feia.
    Fernando Florencio
    Ilhéus/Ba

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